quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Qual a lógica da pontuação?

A dificuldade com a pontuação é democrática : milhões de brasileiros compartilham da mesma agrura.
O problema ( ou solução ) da pontuação é sintático. Quando fazemos a escolha das palavras e expressões que comporão a rede do texto, precisamos lançar mão de uma lógica de pontuação, para que cada oração, ou elemento a destacar, diga realmente o que tem a dizer. Um erro de pontuação pode pôr tudo a perder.
Assim, para pontuar corretamente, é preciso reconhecer a estrutura sintática do texto. Se você sabe qual é o sujeito, o objeto direto, o objeto indireto, o agente da passiva e tantas outras funções sintáticas numa oração, não cometerá erros de pontuação, como, por exemplo, separar com a vírgula o sujeito de seu verbo; o objeto direto do verbo que ele completa etc.
Pontuação é realmente uma lógica e até uma logística sintática. Não se jogam no texto, aleatoriamente, vírgulas para lá, dois pontos para cá, como se fossem temperos de salada.
Observamos que as grandes dificuldades se concentram no uso da vírgula. Numa perspectiva mais panorâmica, é correto dizer que há um uso sintático e um uso individual da vírgula. Este seria mais uma espécie de tentativa de embelezamento do texto ou de enfoques pessoais, destacando-se, por exemplo, elementos enfáticos ou que deem maior elegância ao enunciado. Já o uso sintático, em princípio, marca elementos do texto que atuam no campo semântico e tende, portanto, a garantir que esses elementos sejam portadores da mensagem que o enunciador pretendeu evidenciar.
Vamos a alguns exemplos de um e de outro uso:
Uso estilístico:
Talvez, eu tenha esclarecido a dúvida do aluno.
Hoje, escreverei sobre outro assunto.
Separar pela vírgula esses advérbios Talvez e Hoje é uma questão de estilo individual e não obrigatória. As orações ficariam corretas com ou sem vírgulas.
Uso sintático:
Repare: " O candidato falou naturalmente." e " O candidato falou, naturalmente."
Veja como o emprego da vírgula faz com que as mensagens sejam diferentes. No primeiro caso, exprime-se que o candidato falou com naturalidade; no segundo, ao se colocar a vírgula, passa-se a mensagem afirmativa de que é óbvio que o candidato falou. É tão forte a diferença de mensagem que, no primeiro caso, naturalmente é advérbio de modo; no segundo, advérbio de afirmação. Não usar a vírgula aqui corresponde a deixar de transmitir o que se quer.
Há casos corriqueiros e obrigatórios do uso da vírgula, como separar o local da data ( São Paulo, 21 de maio...), o vocativo ( João, venha aqui!) etc., portanto, de emprego prático ou normativo. Em outra ocasião apresentarei mais alguns comentários a respeito da pontuação.
Fica aqui minha sugestão: sempre que recorrer aos sinais de pontuação, certifique-se de que eles estejam contribuindo, efetivamente, para a produção de sentido que você pretendeu dar a seu texto.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Laboratório Gramatical

Contrariamente ao que a maioria das pessoas pensa, as regras (as leis) que regem a língua podem ser testadas. Sírio Possenti mostra-nos que isso é possível da mesma maneira que se aplicam as regras da Física e da Química, em certo sentido, isto é, mudando-se uma das variáveis em um experimento qualquer, o resultado poderá ser diferente.
Consideremos, por exemplo, o caso dos chamados adjetivos com função de advérbio, em exemplos como Ele anda rápido. Em aula, o professor pode querer convencer o aluno de que "rápido" aqui é advérbio ( com função de adjunto adverbial e não de predicativo do sujeito).
É perfeitamente possível provar que se trata de um advérbio. Para tanto, basta alterar uma variável. O procedimento é simples. Se for predicativo do sujeito, "rápido" concorda com o sujeito. Dado que esse exemplo é como é, o teste é inútil, porque tanto se pode dizer que "rápido" concorda com "ele" quanto que é um advérbio, porque é invariável. O teste consiste, pois, em mudar o sujeito. Em vez de "ele", tente-se com "ela" ou com "eles". Se o sujeito for assim alterado, o resultado será:
Ela anda rápido.
Eles andam rápido.
Nesses casos, se houvesse concordância, ela seria visível:
Ela anda rápida.
Eles andam rápidos.
Claro essas orações são do português. Mas o teste exige que se mude uma variável de cada vez, para não perder o controle do experimento. Para tanto, a mudança do sujeito não pode ser acompanhada da mudança de sentido do verbo.
No primeiro caso, quando "rápido" não se flexiona, "andar" significa 'caminhar', 'deslocar-se'. No segundo, quando se trata de predicativos do sujeito, "andar" denota um estado (dela ou deles) - e "anda rápido" pode ser parafraseado por "está(ão) rápida(os)".
Também pode-se testar a função de 'rápido' substituindo por "rapidamente". É outra forma de mostrar que se trata de um advérbio, mas ela é menos evidente, depende mais da intuição do que da demonstração.
Assim, construir (ou estudar) uma gramática não é apenas aceitar que determinada construção tem um valor ( certo, por exemplo), e que outra tem outro ( errado, digamos). Trata-se de uma atividade de conhecimento muito semelhante à produzida em outros campos, mesmo os chamados tradicionalmente de científicos.
As gramáticas são teorias da língua e, eventualmente, para compreendê-las ou construí-las, é necessário eliminar o senso comum.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Passarinho verde

A origem da expressão, segundo Márcio Cotrim, é aplicada aos apaixonados. " Ver passarinho verde" lembra aquelas pessoas que, sem nenhum motivo aparente, demonstram exagerada alegria. De fato, verde é a cor da esperança - mas e daí? O que o passarinho tem a ver com isso?
A ave em questão é o periquito, que, antigamente, era muito usado para carregar em seu bico mensagens entre casais apaixonados. Assim, avistar o delicado animalzinho seria, por assim dizer, equivalente a localizar o portador dos segredos amorosos; ou ainda, a visão daquele que alimenta nossa deliciosa expectativa de boas notícias em relação ao ser amado.
Sabe-se que esse tipo de relacionamento foi objeto de uma famosa lenda, segundo a qual as moças avisavam os namorados sobre o envio de cartas de amor, colocando um periquito perto da grade da janela. Hoje, esse ato tão lírico e romântico caiu em desuso no bruto e insensível mundo em que vivemos.
Nesse mundo, porém - e felizmente -, ainda sobram pequenas frestas de ternura. São elas que nos estimulam a não perder as esperanças por completo no que diz respeito a esse sentimento.
Afinal, como todos nós sabemos, a esperança é a última que morre, mas também a primeira que nasce...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Quando a crase muda o sentido

Em artigo recentemente publicado na revista Língua Portuguesa, Luiz Costa Pereira Júnior comenta alguns tópicos de uso de crase que merecem nossa atenção.
Sabemos que o uso da crase costuma desconcertar muita gente, mas se pensarmos em uma função, dentre muitas, de desambiguizar certas construções, aceitaremos que conhecer alguns casos previstos pela norma culta da língua ajudarão o nosso cotidiano.
O acento grave (`) no a tem duas aplicações distintas: a primeira, sinalizar uma fusão de a ( artigo) + a preposição; a segunda, evitar ambiguidade, sinalizando a preposição a em expressões de circunstância com substantivo feminino singular, em que indica que não se deve confundi-la com o artigo a. Ex: " Dilma Rousseff depôs à CPI." Sem a crase, a frase hipotética se revela ambígua: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu depoimento à comissão? O sinal da crase tira a dúvida.
Por isso, a crase é, antes de mais nada, um imperativo de clareza.
Muitas frases em que a preposição indica circunstância ( instrumento, meio etc.) em sequências do tipo " preposição a + substantivo singular", podem dificultar a interpretação por parte do leitor ou ouvinte. Não raro, a ambiguidade se dissolve com a crase - em outras, só o contexto resolve.

Vejamos alguns exemplos de casos em que a crase retira a dúvida de sentido da frase:
Cheirar a gasolina (aspirar) X cheirar à gasolina ( feder a).
A moça correu as cortinas ( percorrer) X A moça percorreu à cortina (seguiu em direção a ).

O homem pinta a máquina (usa pincel nela) X O homem pinta à máquina ( usa a máquina para pintar).
Referia-se a outra mulher ( conversava com ela ) X Referia-se à outra mulher ( falava dela).
Fiz aqui um recorte do assunto, para sugerir que, em crase, a intuição e a generalização de exemplos concretos podem ser mais efetivas que a " decoreba" de regras.
Se intuímos a regra básica de que só se usa crase diante de palavras femininas quando há a preposição seguida de um artigo, evitamos ocorrências como " à 80 km", " à correr" ou " à Pedro". Afinal, nunca pensamos em crase com palavras masculinas ou verbos: daí não haver em "a lápis", " a contragosto", " a custo ".
Se lembrarmos que a crase serve para eliminar a ambiguidade, também evitamos tirar o acento indicador da crase em contextos que pedem, por exemplo, " à beira", " à boca miúda", " à caça". Acredito que assim fica muito mais fácil pensar em crase - um assunto que pode tirar o sono de muita gente.

Quem sou eu

Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.